quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cristianismo e Filosofia

A divisão mais profunda da história da filosofia é marcada pelo cristianismo. As duas grandes etapas do pensamento ocidental estão por ele separadas. Mas seria um erro crer que o cristianismo é uma filosofia. É uma religião, coisa muito distinta. Nem sequer se pode falar com rigor de filosofia cristã, se o adjetivo cristão tiver de definir um caráter da filosofia. Só podemos chamar de filosofia cristã à filosofia dos cristãos enquanto tais, isto é, a que está determinada pela situação cristã de que parte o filósofo. Neste sentido, o cristianismo tem um papel decisivo na história da metafísica, porque modificou essencialmente os pressupostos sobre os quais o homem se move, e, portanto, a situação a partir da qual tem de filosofar. Como o homem cristão é diferente, é diferente a sua filosofia, distinta, por exemplo, da grega.
O cristianismo traz uma idéia totalmente nova que confere um sentido à existência do mundo e do homem: a criação. "In principio creavit Deus caelum et terram". É desta frase inicial do Gênesis que parte a filosofia moderna. Vimos como o problema do grego era o movimento: as coisas são problemáticas porque se movem, porque mudam, porque chegam a ser e deixam de ser o que são. O que se opõe ao ser é o não-ser, o não ser aquilo que se é. Desde o cristianismo o que ameaça o ser é o nada. Para o grego não havia o problema da existência das coisas, e para o cristão é isso que é preciso explicar. As coisas poderiam não ser. É a sua própria existência que requere uma justificação, e não aquilo que essas coisas são. "O grego sente-se estranho ao mundo pela variabilidade deste. O europeu da era cristã, pela sua nulidade ou melhor nihilidade". Para o grego o mundo é algo que varia; para o homem da nossa era é uma nada que pretende ser. "Nesta mudança de horizonte ser vai significar uma coisa toto caelo diferente do que significou para a Grécia: para um grego ser é estar aí; para o europeu ocidental ser é, antes de mais, não ser um nada". "Num certo sentido, pois, o grego filosofa já a partir do ser, e o europeu ocidental, a partir do nada" (Zubiri, Sobre o problema da filosofia).
Esta diferença radical separa as duas grandes etapas filosóficas. O problema fica posto de duas formas essencialmente distintas: é outro problema. Assim como há dois mundos, este mundo e o outro, na vida do cristão vai haver dois sentidos distintos da palavra ser, se é que se pode aplicar o nome ser em ambos os casos: o ser de Deus e o do mundo. O conceito que permite interpretar o ser do mundo a partir de Deus é o da criação. Temos por putro lado, Deus, o verdadeiro ser, criador, por outro lado o ser criado, a criatura, cujo ser é recebido. A verdade religiosa é a criação que obriga a interpretar esse ser, pondo o problema filosófico do ser criador e do ser criado, de Deus e da criatura. Deste modo, o cristianismo, que não é filosofia, afeta a filosofia de um modo decisivo, e esta filosofia que surge da situação radical do homem cristão é aquela a que se pode chamar, neste sentido concreto, filosofia cristã. Não se trata, pois, de uma consagração pelo cristianismo de nenhuma filosofia, nem da impossível adesão da religião cristã a nenhuma delas, mas de uma filosofia que emerge da situação capital em que o cristão se encontra: a da sua própria realidade ante Deus. Num sentido lato, isto sucede em toda a filosofia européia posterior à Grécia, e, de modo especial, na dos primeiros séculos do nossa era da filosofia medieval.

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